segunda-feira, 27 de outubro de 2008

A Carta de Apolônio

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Eugênio Salles:
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_PS: Acabamos de receber a última das correspondências desse intrigante rapaz que por dias foi nosso protagonista no Buraco. Fomos aos poucos tomados por esse sentimento melancólico que se tornou intrigante e envolvente. Apolônio pode ser descrevido como um eterno questionamento. Assim como seu nome, ele não é um rapaz comum, com sonhos comuns ou uma vida comum. Nesse triste clima de eleição resolvemos por unanimidade em 3 votos a 1, (Doutor Cardoso disse não concordar com a Democracia e anulou seu voto) transcrever na íntegra a última das correspondências de Apolônio Sideral, filho de madalena com um homem qualquer, num dia qualquer de um ano qualquer, vivendo uma rotina qualquer..
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“...É madrugada. Chove. Estava sozinho e num leque de sensações resolvi escrever a vocês meus amigos, que a alguns dias cismaram em transcrever minhas paixões, tristezas e opiniões, transformando elas em histórias. Sou grato pela consideração e por me recepcionarem na visita ao seu “buraco” naquela noite de fortes etílicos...
Quero aqui, bradar aos ventos o que por dentro me corrói...
Talvez ninguém descubra o segredo da vida ou a certeza do fim. Faço votos que isso, de fato, nem aconteça. Não sou um rapaz vibrante e sorridente, mas estou longe de parecer triste ou decepcionado. Acredito no desconhecido, no impossível, no incompreensível e inexplicável sentimento chamado esperança. Encontro-me nessa manhã em mais um início de rotina. Começo mais uma semana na incerteza de ver o fim dela. Mas isso não me faz abater.
Em silêncio analiso minha vida. Percebo o quanto me tornei adulto para não me surpreender com o novo e tão pouco me alegrar com a criatividade.
Poderia aqui mentir ou aumentar minhas histórias. Poderia fingir ou esconder minhas verdades e pensamentos. Poderia tanta coisa que não sei se seria capaz. Falam tanto do poder não é? Pra mim o poder é uma forma de ordenar o que não se pode conseguir, sendo muito mais uma demonstração de fraqueza do que de força.
Se fechado no silêncio posso nada, se suprimido em meus versos posso menos ainda, Se trancando em meus sonhos cancelo minhas expectativas, viajo na imagem dos prazeres da donzela de minhas noites esquecidas.
Sabem amigos o que falo do amor? Não falo nada. Imagino, somente imagino. Como é possível viver e pensar tão distante na lembrança e na presença tão próxima desse sentimento que sofre e alegra?
Não devo chorar, penso que não posso fugir, eu quero o que ninguém pode impedir...
Aos muros e grades meu repúdio. Aos palácios e reis, minhas condolências. Aos covardes meu esquecimento. A distância minha indiferença.
Espero que em breve voltemos a nos corresponder e conversar, por momento encero minhas correspondências, talvez decepcionando a vocês por não poder contar um belo e encantador final feliz, mas acontece que é inicio de semana, e devo seguir minha rotina...

Apolônio Sideral.
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(Voltareemos)
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sábado, 25 de outubro de 2008

Apolônio e o Crime de Outubro

Doutor Cardoso:
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Não trazia mais nada que o prendesse a alguém ou algum lugar. Há três dias que não comia, não por falta dela, mas sim pela opção de não se alimentar...
Há três dias que bebia só água, na crença cega de manter-se lúcido. Estava fraco, quase sem forças para resistir a insanas tentações que pudessem aparecer.
A bucólica vida moderna lhe acentuava o sentimento de solidão e decepção perante o alvorecer de cada dia. Sentia-se sozinho, isolado, distante de qualquer relação de harmonia ou amizade.
Aproximava-se o momento derradeiro e ele não se satisfazia nem tão pouco se entusiasmava. Mas a decisão era necessária. Apolônio tornara-se frio, cruel, impiedoso e sem adversários que pudessem lhe causar medo, muito menos derrotá-lo.
Estava decidido, ninguém o deteria ou o faria mudar de idéia. Seria breve, mas não deixaria rastros nem provas. Estava determinado a cumprir mais um dos seus deveres.
Chegou no local marcado e percebeu que seria ali, naquele momento que mais um acontecimento faria seu nome entrar prá história. Para sempre se lembrariam dele por aquele ato malévolo e inconseqüente.
Apolônio tentava esquecer-se disso...
Adentrou no recinto, onde algumas poucas pessoas faziam um burburinho. Ficou parado, analisando. Pensou consigo mesmo...
- Desde cedo havia aprendido a ser bom, honesto e justo. Aprendera, logo cedo também, que esses conceitos dependeriam das circunstâncias, da necessidade ou dos interesses em pauta.
Não fora fácil para ele se decidir pelo mundo sanguinário. Essa vida por vezes era triste e cansativa. Sentia-se atordoado...
Era jovem, filho único, de família humilde, assalariada. Tinha apenas 16 anos de idade quando seu pai, em meio às dificuldades, com voz rouca e cansada pela insensibilidade dos tempos, lhe disse com inconfundível sabedoria:
- O futuro está em suas mãos, a decisão deve ser tomada. Você terá de optar...

Aquilo lhe suava sarcasticamente aos ouvidos toda vez que exercia seu dever... Lembrava-se das palavras do velho e sentia suas mãos suarem frio. Mãos que seguravam a arma, pronta, engatilhada. Era como se uma gravação soasse em cada história que finalizava.
Estava próximo outro momento derradeiro e Apolônio sentia-se poderoso em ver o destino de milhares sob sua jurisdição. Sentia-se forte. Sentia-se grande.
Mas após cada “serviço”, percebia a crueldade lhe pesar sobre os ombros e sentia a responsabilidade lhe cobrar respostas no breve momento em que o novo dia amanhecesse.
Era domingo. Seria necessário maior frieza para mais essa “tarefa”. Seu segredo era concentrar-se..
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Deixou de lado os devaneios e prosseguiu. Caminhava leve e calmo em direção de seu alvo. As pessoas silenciavam ao ver seu nervosismo. Ele não se importava e pouco a pouco a distância diminuía. Entrou na sala onde deveria exercer seu papel. Olhou em volta, apenas três testemunhas o observavam. Fingiu não vê-las. Aproximou-se do alvo. Estava trêmulo e, aos olhos das testemunhas, aparentava medo. Fechou os olhos. Mirou. Apertou as duas teclas necessárias. Percebeu a imagem que lhe causava repúdio. Confirmou...
Saiu da sala imaginando como era cruel, acabava de cometer mais um crime contra si próprio, era como se sentisse seu sangue escorrer pela garganta. Acabava de enganar-se a si mesmo. Estava farto de acreditar na crença tola que tinha acabado de legitimar. Mas como todos diziam que era seu dever, estava ele obrigado a optar, mesmo sabendo que estava obrigado a entregar seu destino nas mãos de falsos sábios da retórica e do bom discurso.
Podia ser preso naquele momento. Acabava de ter sido obrigado a cometer mais um crime contra si próprio. Fora obrigado a entregar seu destino.
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Voltaremos
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terça-feira, 21 de outubro de 2008

Apolônio e o AMOR

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RicArdo CarvalhO:
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Apolônio não era um jovem que despertava interesse nas garotas. Era robusto, mas não tinha o charme nem as palavras necessárias para a conquista desejada. Tinha o olhar cansado e o andar calmo. Era a legítima expressão de uma pessoa tranqüila. Vivia na solidão de seus pensamentos, rodeado pela alegria de seus sonhos. Era breve nas palavras e mais breve ainda em seus relacionamentos. Afirmava ele:

-já dizia o poeta, “as mulheres tem instinto caçador e fazem qualquer homem sofrer”.

Tinha criado sua própria conclusão, que se intitulava “Filosofia Apoleônica do Amor”. Segundo ele todo relacionamento devia ser breve, pois a melhor parte do romance se encontrava na conquista e no descobrir a novidade em cada pessoa.

Ele tinha sua atitude, sua interpretação e até sua filosofia, mas o que poucos sabiam é que Apolônio escondia um grande e irremediável amor. Era seu encanto das noites esquecidas, e das manhãs irradiantes. Ela era a perfeição, assim como todo amor deve ser. Ela era o amor que jamais imaginará ao seu lado, era a rainha, a deusa, a dona de seu desejo.

O que magoava Apolônio era saber que em seus braços a donzela jamais sonhava estar, tornando-se para ele um amor quase esquecido que pestanejava em seu peito

Foi certa feita que Apolônio, nosso herói da filosofia romântica, acordou para o mundo com a inspiração de todas as manhas. Mas aquele dia soava diferente aos seus desejos, e até o ressoar do vento fazia eco suave aos ouvidos do apaixonado. Apolônio lembrara-se que estava de folga e decidiu caminhar ao encontro do nada, sem preocupações, apenas em favor dos devaneios tolos de seus sentimentos.

Andava breve e calmo, sorria, pestanejava, falava sozinho... Imaginava que se naquele momento avistasse sua musa, não hesitaria em beijá-la. E foi então que soltou a frase que prendia ao peito:
-Benditos deuses dos sentimentos que se manifestam ao inesperado, permitam ao pobre jovem, de coração tolo e desejos desesperados. Façam surgir em meu olhar o encanto do romance inesperado, façam surgir ao meu lado a donzela que por ela tenho chorado...
Foi então que ouviu atrás dele a doce melodia das palavras que a ele se referiam:

-Conversando sozinho moço?

O coração do pobre jovem disparava e as palavras se perdiam, o olhar ficava embasado e as conclusões pareciam não verdadeiras. Era ela, sim caros amigos, a musa soberana, a rainha, a deusa dos seus sonhos. Ardiam aos anseios de Apolônio e lhe saltavam as pestanas e seus desejos mais secretos e profundos...

Pensava, imagina. Como agir? Como não agir? O que fazer? O que não fazer? E agora? O que faria ele com sua promessa de beijá-la no mais breve momento que a avistasse?
Não hesitou...

Foi virando-se aos poucos, de maneira calma. Erguendo seu olhar, fazendo um movimento breve, encarou a linda moça sem dizer uma única e simples palavra, aproximou-se de seu corpo, segurando pela mão da donzela. Aproximando-se mais ainda já sentia o perfume que ressoava ao coração. Aproximando-se mais ainda sentiu fechar seus olhos e o calor de sua boca ao encontro dela, seria o momento, o local, a hora, o minuto, o segundo em que Apolonio...
...BBBBBBBBrrrrrrrrrrrããããããããããããããããããããã...
...Maldito despertador que fez Apolônio acordar do sono e perceber que já era segunda-feira, ele deveria ir trabalhar...
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(..VoltaRemoOos..)

sábado, 11 de outubro de 2008

Chapeuzinho e o Resto da História...

EUGÊNIO SALLES:
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...Andando pela rua a alguns dias atrás, me deparei com um velho de barba e cabelos compridos, era maltrajado e pedia esmolas na esquina do Café Solpanos, o velho reunia um pequena multidão ao seu redor, anunciando em um cartaz na parede, que sabia ele do paradeiro de Chapeuzinho Vermelho. Achei interessante saber da mocinha que havia sido parte de minha infância. Pensei que pudesse escutar o velho de galochas por uns instantes...
Ele dizia que teria se encontrado com Chapeuzinho Vermelho a poucos dias e ela havia lhe contado a seguinte história...
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“...Sempre que se lembrava do conto de fadas que tivera sido sua infância, Chapeuzinho Vermelho sofria no silêncio toda sua saudade. Lembrava de todos os detalhes do dia em que saiu de casa sob as recomendações de sua mamãe em direção a casa da vovó, como havia sido perseguida pelo lobo-mau e salva pelo caçador. Não imaginava como e de que maneira, sua feliz infância, pudera se transformar numa incansável rotina de dificuldades.
Os anos tinham se passado e chapeuzinho já se encontrava adolescente, e a muito tempo havia se esquecido da felicidade que tinha ao visitar a Vovó com sua cesta de alimentos.
Chapeuzinho Vermelho tinha se mudado da floresta junto de sua mamãe logo após o ocorrido com o malvado Lobo. A mamãe dizia que era necessário buscar no aconchego e na segurança da cidade, a tranqüilidade para viverem em paz e longe de maiores perigos.
A floresta esbelta e infinita em sua magnífica diversidade, a muito tempo tinha desaparecido, e hoje, sua antiga e fértil terra servia como lucrativo negócio de reflorestamento.
Nunca mais teve noticias de seus amiguinhos animais. Teria descoberto que muitos deles haviam sucumbido a necessidade de sobrevivência e trabalhavam em diversos lugares: no zoológico da cidade, como puxadores de carroças, como fornecedores de leite, passarinhos de gaiolas, peixes de aquários, cachorros confidentes, gatos empresários... e muitas outras profissões que atingiam os mais diversos setores da sociedade.
A vovó a muitos anos tinha falecido, não sem antes labutar durante tempos na fila do SUS, na espera por um transplante de fígado. Sim, disse fígado, pois poucos sabem, mas logo após o ocorrido com o Lobo-Mau, Vovó se tornara alcoólatra. Sofria baixinho por ver destruído, na maldita manha de flores, pela intromissão de sua netinha e o velho caçador, seu antigo e prazeroso romance as escondidas com o velho Lobo, e tinha encontrado na bebida a reposta para sua inefável dor de amor.
Segundo informações o caçador teria sido obrigado a trocar de profissão, primeiro porque a floresta e os animais haviam desaparecido, e segundo porque ele teve de entregar sua arma ao Estado em troca de míseros tostões. As ultimas noticias que Chapeuzinho Vermelho tinha obtido do caçador, davam conta de que ele teria virado vendedor ambulante e sobrevivia pelas vendas de DVD´s e CD´s piratas no centro da capital paulista. A noite, o antigo caçador, oferecia serviços de guarda particular para auxiliar em suas despesas.
A mãe de Chapeuzinho estava aposentada e estava se sutentando aos custos do salário mínimo que era oferecido pelo governo. Morava na periferia e continuava a fabricar costuras, remendar calças, pregar botões e pequenos concertos que lhe dessem certo lucrinho.
Chapeuzinho Vermelho trabalhava em uma loja de eletrodomésticos, uma famosa loja de preços lá em baixo em todo dia seguinte. Chapeuzinho Vermelho mal tivera conseguido se formar no ensino médio e sua esperada cadeira no ensino superior ainda a aguardava, ou não. Nunca teve namorado ou qualquer encontro com o famoso príncipe da outra história de fadas vizinha a sua. Buscou beijar alguns sapos na esperança do milagre, mas percebia que o feitiço era bravo e desistiu da utopia amorosa. Seu salário era baixo e o pior de tudo isso era perceber ele menor ainda ao fim de cada mês com todos os descontos sobre os desconhecidos benefícios. Os trajes vermelhos a muito tempo havia deixado de usar, pois, seguindo conselhos de sua mamãe, achava melhor não ser confundida com eses malditos comunistas de trajes arrojados e sua identificação vermelha. Dizia sua Mamãe que isso poderia atrapalhar em sua “carreira profissional”.
E assim a história de Chapeuzinho continuava a existir, não com todo luxo e requintes do conto inicial, mas sim, numa dura e cruel continuação em forma de realidade. Chapeuzinho não pensem vocês, havia desanimado, acreditava ela em um nova historinha ensinada por sua mamãe, dizendo que um dia ela poderia ser feliz, ganhando na mega-sena ou participando de um reality-show da TV de novelas que ela tanto adorava. Sentia que poderia mudar de vida e continuava a acreditar no sonho de criança de ver maravilhas e doces caindo dos céus, de poder constituir família, morar num bairro nobre e viajar pelo mundo.
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O velho de galochas encerou sua história e voltou a sentar no chão onde estava quando o avistei do inicio, recebia com bondade e agradecimento as moedas que as pessoas lhe deixavam. So depois fui perceber que aquele senhor de barbas e cabelos compridos, era o velho Lobo-Mau sobrevivendo as custas do passado...
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(Voltaremos....)

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Das Coisas Que Eu Não Entendo..

-Doutor Cardoso.
"...São várias as coisas que eu não entendo, são vários os argumentos que eu não compreendo, são Várias as decisões que me deixam indignado...”

...Quando de minha decisão em se mudar para o campo, não foram poucos os amigos que sugeriram estar louco em minha escolha. Diziam que caminhava ao contrário e devia repensar a atitude de deixar todas as possibilidades da cidade grande para mudar-se para interior. Tinha comigo que aquela seria uma difícil decisão de justificar para comigo mesmo, mas era necessária para minha alegria. Gostaria de naquele momento repensar várias coisas que até ali não entendia. Necessitava pensar sobre alguns momentos e atitudes que até ali não compreendia. Queria a principio fugir de tudo e todos, gostaria de ficar sozinho e em pouco ou nada me questionar, necessitava tranqüilidade. Os dias se passavam agradáveis e pouco pensava em minhas necessidades morando no alto da montanha, bem pra trás do barulhão daquela cidade. As vezes visitava a cidade para comprar alimentos e buscar o mensal dinheiro de minha aposentadoria. Quando acordava disposto, saia logo cedo e andava em direção ao riacho que nascia próximo de casa, me sentia feliz, via naquelas águas a corrente de indagações que nunca parava para maiores explicações. Admirava o movimento triste e calmo daquelas pequenas vertentes que do alto do morro desciam, mas não entendia como podia algo tão simples jamais poder ser detido, como poderia toda a força do homem, toda sua arrogância de sabedoria engenheira e mecanicista, não explicar como podiam perder para aquele pequeno, mas imponente riosinho.
Sempre que possível, me sentava na varanda e ficava a analisar ao longe a correria da cidade que ali por perto sucumbia. Pensava de que maneira podia eu fazer parte de tudo aquilo, e de como acima de tudo conseguiríamos nós, modificar toda aquela estrutura pré-determinda e que tanto influenciava em nossas opções. Ao meu ver era um extremo desperdício de vida. Relutando comigo mesmo analisava passo a passo cada decisão, me detinha na maior parte das vezes na relevância das escolhas das pessoas e de como elas influenciariam na vida de todos. Ficava triste ao perceber que nem sempre o desejo do bem coletivo seria respeitado em função do privilégio egoísta de alguns poucos. Ficava mais triste ainda com o desperdício do tempo por maior parte das pessoas, transformavam o tempo em equação matemática e deixavam de viver aqueles belos momentos em companhia das pessoas que tão bem queriam.
Ficava perplexo ao perceber que ali, no interior, no meio do mato, no alto da montanha, poderia eu encontrar a tranqüilidade. Conseguia me sentir distante daquela realidade tão dura e difícil de ser encarada.
Não pensem vocês que estaria eu fugindo de um problema pelo qual também era culpado, pelo contrário estava eu ajudando a resolver esse problema, pois seria um a menos na cadeia de escravos do tempo e das obrigações que traziam recompensas financeiras. Não fazia mais parte daquela corrente e me entristecia perceber que talvez estava só.
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__( Voltaremos..)
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quinta-feira, 2 de outubro de 2008

A Chuva...

EUGÊNIO SALLES:
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Como era difícil pra ela entender das coisas que aconteciam ao seu redor... a vida terrena tão pouco se modificava e a vida suprema tão pouco lhe convencia...
Conheci ela no inverno de 1987, era jovem e bela, tinha o andar detalhado de quem sabia a estrada desejada e me deixou um olhar que talvez jamais encontrei em outro alguém. Eu nada tinha a perder naquela tarde chuvosa, resolvi andar de chinelos e bermudas pra tirar das costas o peso de minha rotina e sentir na pele o vento frio que soprava. Quando percebi estava eu sentado em no banco da rua Odorico, próxima ao edifício onde morava. Pensava em tudo que me trazia até ali, e sobre tudo que ainda desejava buscar. Talvez por dentro me sentisse triste por achar que tinha deixado de lado grande parte de meus sonhos e planos da juventude, mas tinha a certeza de que de nada adiantava minhas queixas se elas irremediáveis ali seriam.
A chuva aumentava de intensidade conforme o passar dos minutos e eu que sempre achei a dança da água magnífica, pouco me importava com o mundo ao meu redor.
Foi derepente que do meu lado sentou-se uma moça de tamanho robusto, trajes negros e compridos com um gorro na cabeça. Estava toda encharcada com a água da chuva e não se importou muito com minha presença. Ficamos estáticos por algum tempo, sem dizer nada um ao outro, o silêncio foi nosso cumprimento. Pensava comigo que talvez devesse tomar a atitude de iniciar uma conversa ou ao menos lhe oferecer o guarda-chuva. Não foi necessário, ela se abraçou em meu corpo e disse que pensava em demasia na água, como via nela a fortificação de uma tempestade e simplicidade de uma gota. Eu não conseguia lhe ofertar nada em palavras muito menos em atitudes, deixava a falar e me sentia feliz ao ver seu pleno prazer em se comunicar com um velho sentado sozinho numa rua deserta numa tarde de quinta-feira. Sem demoras me contou de toda sua vida e de todos seus amores, estudos e empregos, todas suas batalhas, decepções e covardias. Me falou de seus pais, e dos irmãos que a muito tempo não via, me disse de seus anseios e de tudo que lhe magoava.
Pensava em suas palavras e de como aquilo era importante para ela e de como seria mais ainda para mim. Imaginei ser aquele o momento que a tanto tempo buscava dentro de meus sonhos, o momento de dizer de tudo que em mim trazia, e ali com ela compartilhar, talvez algum bem me faria...
Num estalo de coragem levantei meus olhos e fixo no olhar dela perguntei:
“...Que fazes você com seus sentimentos dizendo-os ao vento e na chuva, transformados em palavras e dirigidas a um velho?”
Ela sorriu, e me disse:
“...O segredo da chuva é pensar que quando ela passar tudo se renovará, tudo pode nascer novo e os sonhos dela brotar. Velho em seu olhar o senhor nada tem, deixe que com a chuva se vá todos seus problemas ou desdém, deixe que com a chuva se vá aquilo senhor, que a muito tempo não lhe faz bem... Tinha de lhe dizer das dores que carregava, daquilo que por dentro me magoava, das saudades que a muito tempo carregava, dos planos que a muito tempo não sonhava. Eu precisava na chuva, senhor, sair de alma lavada...”

Não tive tempo de dizer mais nada, ela se levantou e nem ao menos me disse adeus, me deixou um olhar que nunca mais encontrei, me deixou a lembrança que pelo resto de meus dias imaginei, me deixou um momento que jamais esquecerei...
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__( Voltaremos..)
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