sábado, 25 de outubro de 2008

Apolônio e o Crime de Outubro

Doutor Cardoso:
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Não trazia mais nada que o prendesse a alguém ou algum lugar. Há três dias que não comia, não por falta dela, mas sim pela opção de não se alimentar...
Há três dias que bebia só água, na crença cega de manter-se lúcido. Estava fraco, quase sem forças para resistir a insanas tentações que pudessem aparecer.
A bucólica vida moderna lhe acentuava o sentimento de solidão e decepção perante o alvorecer de cada dia. Sentia-se sozinho, isolado, distante de qualquer relação de harmonia ou amizade.
Aproximava-se o momento derradeiro e ele não se satisfazia nem tão pouco se entusiasmava. Mas a decisão era necessária. Apolônio tornara-se frio, cruel, impiedoso e sem adversários que pudessem lhe causar medo, muito menos derrotá-lo.
Estava decidido, ninguém o deteria ou o faria mudar de idéia. Seria breve, mas não deixaria rastros nem provas. Estava determinado a cumprir mais um dos seus deveres.
Chegou no local marcado e percebeu que seria ali, naquele momento que mais um acontecimento faria seu nome entrar prá história. Para sempre se lembrariam dele por aquele ato malévolo e inconseqüente.
Apolônio tentava esquecer-se disso...
Adentrou no recinto, onde algumas poucas pessoas faziam um burburinho. Ficou parado, analisando. Pensou consigo mesmo...
- Desde cedo havia aprendido a ser bom, honesto e justo. Aprendera, logo cedo também, que esses conceitos dependeriam das circunstâncias, da necessidade ou dos interesses em pauta.
Não fora fácil para ele se decidir pelo mundo sanguinário. Essa vida por vezes era triste e cansativa. Sentia-se atordoado...
Era jovem, filho único, de família humilde, assalariada. Tinha apenas 16 anos de idade quando seu pai, em meio às dificuldades, com voz rouca e cansada pela insensibilidade dos tempos, lhe disse com inconfundível sabedoria:
- O futuro está em suas mãos, a decisão deve ser tomada. Você terá de optar...

Aquilo lhe suava sarcasticamente aos ouvidos toda vez que exercia seu dever... Lembrava-se das palavras do velho e sentia suas mãos suarem frio. Mãos que seguravam a arma, pronta, engatilhada. Era como se uma gravação soasse em cada história que finalizava.
Estava próximo outro momento derradeiro e Apolônio sentia-se poderoso em ver o destino de milhares sob sua jurisdição. Sentia-se forte. Sentia-se grande.
Mas após cada “serviço”, percebia a crueldade lhe pesar sobre os ombros e sentia a responsabilidade lhe cobrar respostas no breve momento em que o novo dia amanhecesse.
Era domingo. Seria necessário maior frieza para mais essa “tarefa”. Seu segredo era concentrar-se..
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Deixou de lado os devaneios e prosseguiu. Caminhava leve e calmo em direção de seu alvo. As pessoas silenciavam ao ver seu nervosismo. Ele não se importava e pouco a pouco a distância diminuía. Entrou na sala onde deveria exercer seu papel. Olhou em volta, apenas três testemunhas o observavam. Fingiu não vê-las. Aproximou-se do alvo. Estava trêmulo e, aos olhos das testemunhas, aparentava medo. Fechou os olhos. Mirou. Apertou as duas teclas necessárias. Percebeu a imagem que lhe causava repúdio. Confirmou...
Saiu da sala imaginando como era cruel, acabava de cometer mais um crime contra si próprio, era como se sentisse seu sangue escorrer pela garganta. Acabava de enganar-se a si mesmo. Estava farto de acreditar na crença tola que tinha acabado de legitimar. Mas como todos diziam que era seu dever, estava ele obrigado a optar, mesmo sabendo que estava obrigado a entregar seu destino nas mãos de falsos sábios da retórica e do bom discurso.
Podia ser preso naquele momento. Acabava de ter sido obrigado a cometer mais um crime contra si próprio. Fora obrigado a entregar seu destino.
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Voltaremos
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2 comentários:

Luck Siqueira disse...

Apolônio vem se tornando um personagem marcante. Merece um livro de sua história!

Abraços!

Jean Matheo Piccini Lago disse...

Gostei dos "falsos sábios da retórica e do bom discurso"
asioehosaiehioasehio
Apolônio ama, Apolônio mata!
O que mais esse Apolônio pode fazer?